Edição 2023-2024

Mastarel: Águas de dentro

Elaine Arruda e Mestre João Aires

 

Faz mais de uma década que a artista visual paraense Elaine Arruda imerge no Porto do Sal, complexo de portos situado na paisagem da Baía do Guajará, no centro histórico de Belém, criado em 1933. Ainda hoje, esses portos conectam Belém às ilhas e furos de rios que rodeiam a capital. Nesses locais, coexistem populações de matrizes indígenas, ribeirinhos e urbanas. O porto serve de local também para a comercialização de especiarias amazônicas, sendo considerado referência nesse serviço na década de 30.

 Nesses cruzamentos de realidades sociais, econômicas e culturais, destacam-se no porto os saberes e as práticas ligados ao rio, como a tipografia naval, a construção de barcos de madeira, de redes de pesca, entre outros. É nesse território que Elaine Arruda vem articulando seu trabalho, que teve início na metalúrgica Santa Terezinha, onde desenvolveu gravuras em grandes escalas, que resultou na dissertação do mestrado da artista: “Paisagens Gráficas”.

 Posteriormente, no doutorado, no mesmo galpão da metalúrgica, surgiram outras experiências de ocupação, com ações colaborativas de outros artistas. Desse campo de atuação, ocorreu a expansão para o território portuário, tendo como rota o Mercado do Porto do Sal. Esse movimento se intensificou e se tornou um coletivo denominado “Aparelho”, que, em fevereiro de 2025, completará dez anos de existência.

O coletivo “Aparelho” intensifica ocupações de acontecimentos que envolvem diversos tipos de pessoas, como os moradores do porto, artistas que colaboram nas ações, trabalhadores, feirantes, crianças, passantes e o público do entorno.

 Uma característica de Elaine Arruda é que ela demonstra um papel fundamental na reformulação da relação arte com o lugar, não somente como paisagem ou ambiente construído, mas também com o espaço social e geográfico. Dentre esses saberes, a artista paraense traz à luz a tecelagem artesanal de rede de pesca e a construção naval em madeira.

 

ENCONTRO COM O MESTRE E O DIÁRIO DE NAVEGAÇÃO DO MASTAREL

 O encontro de Elaine com o mestre paraense da carpintaria naval João Aires, que trabalha há mais de 28 anos na área e hoje atua no Porto do Sal, fortaleceu a parceria com o local e iniciou um processo de ensino aprendizagem, no que se refere à construção de itens relacionados à carpintaria naval.

 Surgiu, então, a instalação “Mastarel”, da artista no ano de 2016 no topo do Mercado Porto do Sal. Um trabalho construído com um mastro de embarcação atual, juntamente com a montagem de uma embarcação antiga.

 Nesses mapeamentos de afetos e memória, o “Mastarel”, no ano de 2019, navegou para o Espaço Cultural Banco da Amazônia para construir narrativas, ressignificando, em certa medida, o lugar da sociabilidade da arte, na resistência e existência, reivindicando o direito à própria vida. Singrou também, no mesmo ano, para o pátio do Museu do Estado do Pará.

 No final do ano de 2022, Mastarel percorre o rio onde o Mestre João nasceu e nomear a instalação com nomes de rios da Amazônia é um ato de resistência frente aos processos de apagamentos. Assim, Cururu foi produzida no Atelier + Casa, espaço autônomo que abriga projetos em arte contemporânea. Este trabalho, realizado de forma experimental em caráter de laboratório, é ativado com a presença de pessoas em seu interior, em momentos de partilha provocados pela arte e vida.

 E, no ano de 2023, Mastarel como desdobramento do rio Cururu, também em caráter imersivo e relacional, ancorou na Primeira Bienal de Artes das Amazônias, e a artista aliou sua história de vida ativando a memória do rio Tijuquaquara onde nasceu sua vó. A artista atravessou três gerações: Foi mágico ver a avó Terezinha, a mãe, Sheyla e ela navegando pelo rio, buscando memórias e histórias.

 E após essa imersão em Tijuquaquara, a rota do Mastarel é conduzida pelos rios de dentro e retorna para o Mercado do Porto de Sal. O telhado foi reformado. A pintura interna ressaltou uma beleza ímpar do prédio. Houve também o momento do “lavadão” quando a comunidade se reuniu e lavou o mercado como um ato de cuidado e pertencimento.

 E, todo este processo e preparo, é para o ato da Mastreação que ilumina o topo do mercado repleto de significados, e reflexões sobre processos de identificação. A comunidade passou a se ver representada pelo/no lugar de transitoriedade que se construiu, pois o barco que ali aportou, assim como eles, se fixou na margem da cidade e sobre uma edificação em constante esforço pela sobrevivência.

 O Porto do Sal é a ancoragem da mostra aqui, com múltiplas linguagens obtidas pelas experimentações, justaposições e sobreposições de materiais e tecidos da mais valia simbólica visíveis em fotografias, gravuras, desenhos, objetos e vídeos. A produção da artista, legitima a dialogicidade fundada nos sonhos, memórias, inquietações e criações.

 Essas diversas camadas de vivências humanas atravessam a arte e a vida da artista Elaine Arruda numa perspectiva de corpo, paisagem e arquitetura. As águas de dentro, navegadas por Elaine e João, se impõem e apostam no reconhecimento de vastos territórios complexos. Sejam eles geográficos, artísticos, sociais, afetivos, políticos ou econômicos.

 Mastarel está ancorado e atrelado no Porto do Sal temporariamente – Até a próxima viagem!

  
Vânia Leal

Curadora